Neste momento de Congresso Estatuinte, lembrei de Darcy Ribeiro e de seu amor à Universidade. E lembrar Darcy me fez voltar ao discurso que proferiu na posse de Cristóvam Buarque como reitor da UnB: “Universidade para quê?” (Ribeiro, 1986), talvez a menor e menos conhecida obra de Darcy educador. Pequena apenas no pequeno número de páginas; enorme na profundidade das suas reflexões.
Dizer que Darcy Ribeiro foi um apaixonado é redundância. Darcy foi um homem que viveu intensamente, um homem que nunca se recusou a enfrentar os desafios do seu tempo com todas as suas forças; um pensador e orador apaixonante. Como diz uma de suas bibliografias, “Para Darcy, enfim antropólogo, escrever romances, fazer poesia são facetas dessa paixão pelo conhecimento. Mas essa paixão não era excludente. Pois estava amarrada às circunstâncias da ação política, da necessidade de fazer escolhas, de decidir e agir sobre elas.” (Gomes, 2000, 21).
“Universidade para quê?”, trinta e duas páginas densamente povoadas de compromisso apaixonado e entrega incondicional, que devem ser a tônica deste momento e que a Ufam se propõe pensar a si mesma a delinear novos caminhos para o seu futuro próximo.
Considerando as diferenças sóciopolíticas entre o momento do discurso de Darcy Ribeiro (1985) e os dias atuais, “Universidade para quê?” oferece uma indicação clara de qual Ufam devemos construir:
Uma universidade consciente de seu papel e do seu tempo, à qual não é mais permitido reproduzir o colonialismo de saber que historicamente marca o fazer acadêmico;
Uma universidade que não se subordine às mordaças do acordo de Bolonha que condena as universidades do Sul1 a se tornarem arremedos de instituições de ensino superior do Norte, reduzidas a cursos tecnicizantes, mero formadores de mão de mero formadores de mão de obra local especializada para o mercado global;
Uma universidade que não se resigne à condição de “universidade de mentira [...] tão insciente de si como contente consigo mesma” (Ribeiro, 1986, 4) no desempenho do papel secundário que lhe reserva a reestruturação do conhecimento imposta pela hegemonia do capitalismo global;
“Uma universidade de verdade”, que se constitua como um centro de “criatividade científica e cultural” (Ribeiro, 1986, 5), um espaço de discussão e reflexão crítica que seja capaz de alimentar o diálogo entre saberes diferentes, entre a ciência ocidental moderna e as muitas formas de compreender o mundo formuladas pelos muitos sistemas de produção de conhecimento não científicos, presentes ainda hoje em toda a Amazônia.
O Congresso Estatuinte é o momento oportuno para afirmarmos o nosso compromisso com uma universidade tomada por uma “postura indagativa de autoquestionamento livre e ardente” (Ribeiro, 1986, 5), o momento oportuno para deixarmos de nos lamentar como “viúvos de universidade” (Ribeiro, 1986) que não foi o que deveria ter sido, porque se apequenou aos ditames burocratizantes de acordos de cooperação internacionais
difundidos como uma nova forma de ser/fazer universidade, pelas condicionantes do mercado, pelos parâmetros quantitativistas das comissões de avaliação do MEC e CNPq, etc. etc. etc.
Que o Congresso Estatuinte marque a morte de uma universidade indigna desse nome, que descambou para uma docência descompromissada, para a mercantilização da pesquisa e extensão transformadas em serviços postos à venda no pregão de editais, para a Dedicação Exclusiva, princípio garantidor da excelência acadêmica, descumprida, violentada através de consultorias, assessorias e prestações de serviços venalizados e para o compromisso social esquecido, e que, como o “renascimento no rito de passagem (Ribeiro, 1986, 7), dele nasça uma universidade para ser como houvera sido: uma universidade amazônica, comprometidacom o destino de nossa região e nossas gentes; uma universidade que seja a “Casa da Consciência Crítica” (Ribeiro, 1986, 15).
Lá de onde estiverem (e certamente que estarão em boa companhia!), que Darcy Ribeiro, “mestre” Anísio Teixeira2 e Paulo Freire façam de nós, delegados no Congresso Estatuinte, seus “cavalos de santo” em defesa da Universidade como lugar de debate livre e autônomo de idéias, compromisso tão necessário nos dias de hoje,
quando a universidade pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada sofre a ameaça constante de tecnicização do fazer acadêmico que ameaça reduzi-la a um “colegião”, mero reprodutor de conhecimento pasteurizado sem lastro no experimentalismo prático-crítico que deve caracterizar a vida acadêmica.
Depois de citar Darcy Ribeiro, o melhor é deixar ele mesmo falar: “Pode-se dizer da cultura erudita brasileira, que ela serviu e serve mais às classes dominantes, para a opressão do povo que a outra coisa. Muitas vezes foi como um enfeite, um adorno, quando não foi a legitimação do poder dos poderosos, consagração da riqueza dos ricos e a consolação dos aflitos com as realidades desse mundo. [...] O saber ou a técnica, por competentes que sejam, nada significam, se não se perguntam para que e para quem existem e operam, se não se perguntam a quem servem, se não se perguntam se há conivência do sábio com o cobiçoso” (Ribeiro, 1986, 9-10).
Essa deve ser a função do Congresso Estatuinte: fazer a Ufam repensar a si mesma, “com autonomia e em liberdade” (Ribeiro, 1986, 8); “ordenar, concatenar as ações, para fazer frente ao espontaneísmo fatalista e, sobretudo, para impedir que os oportunistas façam prevalecer propósitos mesquinhos. Impedir que o professor tal, muito competente às vezes em seu campo, porém com mais talento ainda para puxar o saco do ministro tal, para adular o senador tal, a fim de que o seu pequeno reino na Universidade cresça mais que a Universidade como um todo. Esta eficácia daninha destrói a universidade, tal como o câncer destrói um corpo. É um parasita que vive da carne da instituição que habita” (Ribeiro, 1986, 9).
Criar uma “livre universidade pública” (Ribeiro, 1986, 15), reinventar “uma assessoria cultural, científica e técnica, que seja independente e insubornável, composta por sábios, que não sejam servidores de ninguém, que não dependam de partido nenhum. Essa assessoria autônoma, só a universidade pode dar.” (Ribeiro, 1986, 15), esse deve ser o compromisso dos delegados estatuintes.
Parafrasendo “mestre” Darcy, a Amazônia “não pode passar sem uma universidade que tenha o inteiro domínio do saber humano e que o cultive não como um ato de fruição erudita ou de vaidade acadêmica, mas com o objetivo de, montada nesse saber, pensar” (Ribeiro, 1986, 5) a Amazônia de suas gentes como problema e solução.
PS: Dedico este artigo ao amigo José Henrique Mesquita, que morreu ano passado, e que falaria com muito mais paixão sobre o “mestre Darcy”, como sempre dizia ao lembrar-se dos seus tempos heróicos de UnB, e que se aqui estivesse certamente estaria ajudando a fazermos a UFAM com que sonhamos.
1
“Sul”, aqui, não em sentido geográfico, mas no sentidoutilizado por Boaventura de Sousa Santos, para
designar os países do “terceiro mundo”, colocados fora
do sistema hegemônico ditado pelos países do Norte.
2
“Mestre”, como Darcy se referia à Anysio Teixeira; e
como aqueles que lhe eram próximos se referiam à
ele, Darcy.
Referências:
Gomes, Mércio Pereira (2000). Darcy Ribeiro. São Paulo: Ícone.
Ribeiro, Darcy (1986). Universidade para quê? Série UnB. Brasília: Editora Universidade de Brasília.
Santos, Boaventura de Sousa (2007). La Reinvención del Estado y el Estado Plurinacional. Santa Cruz de la Sierra: Alianza Internacional CENDA, CEJIS, CEDIB.
Lino João de Oliveira Neves é mestre
em Antropologia Social pela
UFSC e professor do Departamento
de Antropologia (ICHL) da Ufam.
Retirado de: Jornal da ADUA
Atualmente no processo em que passa a UFAM de precarização deve esta servindo para a formação dos cursos das elites locais!com apoio superior da mesma, como formar formadores de opinião se os cursos do ICHL estão precariamente funcionando?a prioridade e Medicina, Engenharia e Direito
ResponderExcluirSINASEFE conversa com Duvanier em frente do MPOG
ResponderExcluirhttp://www.youtube.com/watch?v=f9SlzpA-dkk&feature=player_embedded
Não compara nosso governo com o do Fernando Henrique" Rapaz, como não comparar diante desta situação. Ele falou muito, para nada. Os coitados que estavam na portaria perderam 10 minutos de suas vidas tentando um diálogo decente, nada aconteceu. No fim de tudo, sai ele com seu carrão para sua mansão, cabeça no salário, mas só o dele!